Os Celestiais do Apocalipse - Prólogo da Devastação - Capítulo 2 - Alfa


Depois da sessão de cinema, fomos andando juntos até sairmos pela portaria principal, onde notamos que a chuva havia ficado mais forte, e menos pessoas estavam nas ruas. Era no mínimo incomum considerando que era 11:00 da manhã no meio do hipercentro de uma capital muito movimentada. Mesmo sendo um domingo, era estranho.

Gabrielle: Que saco. Eu não trouxe sombrinha. – Ela disse, após procurar em vão algo que pudesse a cobrir da chuva. Vivian já estava com sua sombrinha preta em mãos, que havia tirado alguns segundos atrás de sua bolsa.                                  

Vivian: Já comigo. Vim preparada. – A sombrinha era grande o suficiente para comportar as duas com conforto.

Gabrielle: Ah, obrigado Vivian! – Gabrielle começou a saltitar, com sua atitude e personalidade brincalhona e infantil e logo pulou para dar um grande abraço em Vivian, debaixo de sua sombrinha. Vivian soltou uma risada e lhe retornou abraço apertado.

Vivian: Ai que coisa fofa, gente, Meu Deus! – Ambas começaram a puxar uma a outra, fazendo seus corpos balançarem e em alguns momentos quase perderem o equilíbrio. Eu e Ana as observamos, rindo da incrível e cômica forma delas demonstrarem o afeto uma pela outra. As pessoas ao redor estavam ou fazendo o mesmo ou estranhando a atitude das duas adolescentes. Após alguns segundos as fitando, dei alguns passos adiante e olhei para a avenida algumas centenas de metros abaixo. Entrei debaixo da chuva sem me importar, pensando que não havia nenhuma outra sombrinha para nós. Comecei a traçar a rota meu ponto de ônibus dali, já que era o mais próximo.

Ismael: Como meu ponto fica próximo daqui, não tem problema eu me molhar.

Uma sombra me cobriu, e quando virei as costas vi que Ana estava tão preparada quanto Vivian, com sua sombrinha já cobrindo nós dois.

Ana: To com a sombrinha aqui. Não precisa arriscar ficar com um resfriado.

Ismael: Valeu Ana. Isso vai ajudar.Deixa que eu carrego. – Ana assentiu, e me deu a sombrinha, e imediatamente a ergui acima de nós. Num rápido olhar notei que os modelos da Ana e da Vivian eram praticamente os mesmos. Me virei para o resto do grupo para decidir como iriamos embora.

Gabrielle: Então, pra onde vamos primeiro?

Ana: O ponto do Ismael é o mais próximo daqui, na esquina logo abaixo, e fica no caminho dos nossos pontos também, então acho que começar por lá seria bom.

Vivian: É. Parece bom. Vamos nessa.

Após todos nós concordarmos com o destino, começamos a andar, nos afastando do shopping. Eu observava ao meu redor enquanto Gabrielle e Vivian se ocupavam com alguma conversa pessoal, que eu não quis dar muitos ouvidos. Ana estava em silêncio, e parecia estar bem com desta forma, então decidi que seria melhor usar minha própria mente para refletir em algo para matar o tempo e não me entediar. Comecei a entrar em mais um dos meus devaneios aleatórios, onde se passava na minha cabeça todo o tipo de pensamento sobre todo tipo de tópico, desde coisas casuais e até mesmo sem um sentido claro até temas complexos, como filosofia e entre outros. Talvez até fosse uma das razões para que eu ganhasse a alcunha de “nerd” da minha sala. O que preenchia minha mente naquele momento era o Racionalismo de René Descartes, que eu havia estudado recentemente na escola. Era uma ideia fascinante. Através de uma cadeira de pensamentos em torno da origem das ideias inatas, podia-se chegar a conclusão da existência de Deus. O fato de que eu próprio ser cristão, aumentava ainda mais minha curiosidade sobre a escola filosófica racionalista, como forma de sustentar melhor minhas teses que tentavam aproximar religião da ciência, coisas que eu nunca acreditei serem completamente diferente umas das outras.

Vivian: Ismael? Ismael! Tá viajando ai?

Uma consequência dos meus devaneios era que eu sempre acabava escapando um pouco da realidade ao meu redor. Alguém tinha que me acordar nestas horas para que eu não acabasse batendo minha cara num poste ou algo do tipo, e Vivian o fez.

Ismael: O-oi, to acordado aqui.

Vivian: O que você tem pra ficar desse jeito toda vez? – Vivian perguntou, estando um pouco atrás de mim e de Ana, e a ultima se virou para Vivian.

Ana: É demência dele. – Ela brincou.

Ismael: A questão é, quem aqui não é demente? Ninguém. Então estamos todos no mesmo vagão! – Soltamos algumas risadas e eu acabara por voltar ao normal, e já de cara notei que a chuva havia ficado mais forte, e continuava a piorar.

Ismael: É melhor a gente procurar um lugar pra nos abrigarmos.

Dei uma olhada nos céus acima e as nuvens não pareciam estar dando trégua.

Ana: Esse tipo de pancada de chuva costuma parar depois de alguns minutos.

Ismael: É, mas parece que dessa vez não.

Ana: Sempre quando chove tá desse mesmo jeito e não costuma durar.

Antes que pudesse continuar a discussão, Gabrielle tocou no meu ombro e me puxou levemente, até que seu rosto estivesse próximo do meu. Vi que sua intenção era de sussurrar, o que me surpreendeu.

Gabrielle: Ismael, tem uns caras estranhos do outro lado da rua...

Um choque correu pela minha espinha de cima a baixo quando escutei estas palavras. Olhei para Vivian e notei que ela alternava seu olhar para o chão e para mim, enquanto Gabrielle olhou para Ana, que escutou o sussurro e entendera a situação. Virei meu rosto por alguns instantes e notei que alguns homens nos fitavam intensamente do outro lado da rua. A avenida estava a poucas centenas de metros. Levaria  pouco mais de um minuto para chegarmos lá.

Vivian: Vamos sair daqui.

Ismael: Tá bom.

Nestas horas, o medo parecia me dominar. A sensação era terrível. Toda a vez, mesmo que eu soubesse que se eu controlasse meu medo e ficasse calmo, eu agiria melhor. No entanto, sempre quando algo assim acontecia, meu corpo e minha mente ficavam confusos, com uma mistura de dificuldade em processar a situação com reações físicas precipitadas. Era um dos lados que eu mais odiava em mim, pois me atrapalhou toda a minha vida e me impediu de tomar atitudes em situações que teriam feito a diferença. Eu sentia que a cada segundo que o perigo se aproximava, tudo iria se repetir novamente. Comecei a seguir Vivian e Gabrielle, que tomaram a dianteira do grupo, enquanto Ana andava no mesmo ritmo que eu. Olhei para trás ao mesmo tempo que Viviam e vi que os homens nos seguiam.

Ismael: Vivian, eles estão vindo.

Vivian: Eu sei.

Podia sentir pela sua voz a quão nervosa estava, e como ela tentava controlar sua voz enquanto falava. Continuei a segui-la até notar que uma pessoa suspeita, algumas dúzias de metros a frente estava se aproximando. Vivian instintivamente tomou o rumo de um beco e começou a andar ainda mais rápido, até que em certo ponto já estávamos correndo. Lembrei que deveria gravar a aparência dos nossos perseguidores para que depois pudéssemos reporta-los a polícia, porém essa observação fugiria completamente da minha mente ao notar que havíamos nos postos em uma enrascada ainda maior: O beco era sem saída. Ao notar isso, o sangue me subiu a cabeça e senti o desespero começar a me devorar. Gabrielle apertou fortemente a mão da Vivian, que olhava o homem que surgiu na entrada do beco, seguido de seus dois comparsas. Ela parecia tentar o seu melhor para se controlar na situação. Ana virou seu rosto para Vivian, com seus olhos parecendo perguntar: “E agora?” enquanto seu corpo se dirigia para longe da sombrinha e foi até a parede. Andei para trás de um pequeno container de lixo para me proteger, e fitei o que parecia ser o volume de um revolver no lado direito da sua cintura. O primeiro na frente era um homem moreno com camisa regata branca simples e uma bermuda jeans. Ele nos olhava como se fossemos ratos encurralados. Eu não conseguia pensar no que fazer, já que o desespero acabara completamente com minha capacidade de raciocinar. Os três começaram a se aproximar enquanto dois deles puxavam um revolver cada. Pela primeira vez senti que poderia realmente morrer, e meus instintos gritavam para me esconder, e não era diferente com as garotas. O comparsa desarmado chegou mais perto enquanto os outros dois ficavam com suas armas apontadas para nós. O desarmado usava um boné preto que lhe cobria o rosto, uma camisa preta e bermuda verde, enquanto o outro que estava armado usava uma camisa polo beje e bermuda preta. O comparsa desarmado foi direto até Gabrielle.  

Camisa preta: Me dá a bolsa, agora!

Gabrielle tirou a bolsa de seu ombro, e logo assim que ele arrancou-lhe a bolsa dos ombros, a deu um tapa no rosto sem nenhum motivo aparente, fazendo Ana se assustar e Vivian se enfurecer enquanto Gabrielle arqueava com o golpe.

Vivian: Desgraçado! Ela não fez nada, sai de perto dela!

Vivian agarrou a bolsa, e Gabrielle tentava puxa-la para longe do bandido, que puxava de volta a bolsa.

Camisa preta: Merda, larga essa bolsa!

O bandido de regata branca chegou até Vivian e a empurrou com seu braço desarmado, mas no processo, as mãos de seu colega escorregaram, e Vivian recuperou a bolsa. Furioso, o bandido de camisa preta apontou sua .38 diretamente para o seu rosto.

Camisa preta: Filha da....

Vivian tremia de medo e raiva, enquanto Gabrielle começava a chorar em pânico. Ana perdeu completamente a força das pernas e caiu de joelhos no chão, em choque. Eu estava tentando me esconder atrás do container, mas um dos bandidos estava de olho em mim. Eu estava agindo como um gigantesco covarde novamente, o que me irritava e me entristecia. Sempre disse que em momentos assim, teria coragem para enfrentar meus medos por elas, e estava acontecendo justamente o contrário. Eu estava fugindo. Gabrielle avançou e empurrou o homem que apontava sua arma para Vivian, num ato desesperado, e seus colegas já estavam com nervos a flor da pele. Todos avançaram para tentar arrancar os pertences dela de uma vez e ir embora. Um deles facilmente tira a bolsa nas mãos da Ana enquanto os outros dois, armados, tentavam controlar Gabrielle e Vivian. O que cuidava de Vivian parecia relutante, mas o que ia até Gabrielle parecia furioso.

Camisa preta: Eu vou matar vocês, suas putas!!

No último momento, Vivian conseguiu reagir antes que o homem apontasse a sua arma para Gabrielle. Ecoa um disparo por todo o beco, assustando a todos. Gabrielle e Ana gritam aterrorizadas e eu tento cobrir meus ouvidos e fechar os olhos, pensando que tudo não passava de um pesadelo. Vivian estava no chão, com lagrimas de dor escorrendo de seus olhos enquanto segurava o ombro direito, ensanguentado. Gabrielle correu e se prostrou ao seu lado.

Gabrielle: Vivian!! Vivian!!

Vivian: A-ah Gabi, tá doendo... que merda...!

Os bandidos também começavam a discutir entre si.

Camisa beje: Cara por que você deu um tiro nela!?

Camisa preta: Essa cadela só tá atrapalhando!

Regata branca: Ah! Foda-se. Ninguém vai vir aqui pra olhar agora! Dá até pra gente brincar um pouco com elas!

Camisa beje: É verdade... elas não são ruins...

Mesmo com meus ouvidos tampados eu conseguia escutar claramente o que diziam. O pânico e o medo no meu coração foram instantaneamente substituídos por uma fúria gigantesca que eu nunca havia sentido antes na minha vida. Quando cogitaram violentar minhas amigas, todos os limites que eu podia tolerar. Cada palavra e ação deles fazia minha fúria aumentar mais e mais.

Camisa beje: Vamos cuidar do coleguinha atrás do container e ai cuidamos das garotas.

Camisa preta: A loira já é minha. Nem vem.

Regata branca: Nem vem. Vamos sortear.

Camisa preta: Vá se foder!

Enquanto conversavam, cada palavra parecia impulsionar algo dentro de mim. Era como se uma sombra estivesse me cobrindo de dentro para fora. Quando dei por mim, minha visão estava escurecendo e meu corpo se movia por conta própria, até que perdi totalmente a consciência.

VIVIAN POV

Eu estava tomada pela adrenalina e pelo terror devido a situação, e mesmo assim a minha raiva era maior, a ponto de que eu poderia me deixar levar por ela. O meu lado inconsciente fazia meu corpo continuar aonde estava enquanto eu tentava com todas as minhas forças superar este lado e proteger a vida de todos, mesmo que eu arriscasse minha vida, mas meus instintos de sobrevivência falavam mais alto. Eu não podia fazer muito.

Gabrielle: Vivian, seu ombro!

Vivian: Gabi...

Vi a silhueta do homem de blusa preta atrás dela, estendendo sua mão ameaçadora para pegar sua cabeça por trás. Então meus olhos fecharam ao som de dois estrondos sucessivos e um forte vendaval. Os barulhos pareciam ser de impactos metálicos. Todos no beco olharam para a origem do estrondo, que vinha do outro lado da rua. De alguma forma, o container de lixo onde Ismael se escondia estava lá agora, com sua traseira completamente retorcida, e sua frente que estava em contato com a parede estava coberta de sangue, formando uma poça na calçada.  Ficamos todos atônitos. Lentamente virei meu rosto para Ismael e tive uma visão aterradora. Seu corpo estava coberto por uma aura escarlate, como se o ar estivesse se transformando em sangue. Suas íris mudaram de cor, passaram de castanho escuro para completamente negros, como se fossem a própria materialização da intenção assassina. De fato, somente com seu olhar, sem nem estar direcionado para mim, já era o suficiente para me paralisar. Não eram olhos humanos. Era um olhar completamente diferente de tudo que havia sentido, e parecia ser algo mais terrível que os piores demônios. Ismael estava fazendo uma pose como se ele tivesse acabado de chutar algo. Perceberia mais tarde que ele havia golpeado e atirado o container do beco para o outro lado da rua, e assim esmagado o homem que estava prestes a pegar Gabrielle contra a parede. Ninguém movia um musculo. A sensação que prevalecia naquele lugar era indescritível. Podia escutar meu coração batendo no meio da tempestade mesmo com raios caindo nos prédios a volta, e os fortes ventos contornando aos uivos os prédios, derrubando uma chuva pesada nas nossas costas. Lentamente Ismael voltou a sua postura normal e começou a andar em direção aos assaltantes, que agora tremiam em pânico.

Regata Branca: Meu Deus cara! Meu Deus cara!

Blusa Branca: Esse cara é o demônio!!

Regata Branca: Mata o desgraçado!!

Escutando a sugestão do colega, o de blusa branca puxou seu revolver. Eu e as garotas reagimos na hora e cobrimos nossos olhos e ouvidos, imaginando que seria o fim da vida do nosso amigo. Dispararam diversas vezes contra ele, e neste momento abri os olhos. As balas pareciam refletir no seu corpo, danificando somente suas vestes. Um dos tiros acertou sua cabeça, a fazendo balançar para trás, somente para logo em seguida ele mostrar que só havia sofrido um pequeno arranhão. Após o sexto disparo, a arma estava vazia. Ele voltou a fitar os bandidos, com um pequeno filete de sangue correndo entre suas sobrancelhas.

“Ismael, o que é você? ” Pensei enquanto Ana correu até nós. Ela chorava fora de controle e se encolheu junto de nós. Arrastamos nossos corpos até que estivéssemos o mais distante possível do nosso amigo. Após o inútil esforço de usar armas contra Ismael, os bandidos gritaram em pânico e tentaram fugir do beco. Ismael não iria deixá-los escapar, e disparou em sua direção, correndo numa velocidade super-humana. O bandido de regata branca virou seu rosto no último instante, o suficiente para poder ver Ismael já logo atrás dele. A última coisa que ele viu, foi um soco em suas costas com força o bastante para o mandar voando até o meio da rua ao lado do beco. Logo após isso, ele saltou incrivelmente alto e correu com seu corpo paralelo ao chão até saltar de volta para o chão, ficando de frente para o bandido que agora restava. Eles não tinham a menor chance. Ele se movia como se fosse um raio. O que restava agora era o de camisa branca. Ismael imediatamente agarrou seu pescoço e o levantou do chão. O jovem se debatia tentando se desprender da mão dele, que cravava seus dedos através da pele de seu pescoço com força bruta. O pescoço dele sangrava cada vez mais. A visão era tão assustadora que meu medo agora era ainda maior que antes. Eu não tinha o que pensar e o que falar. Tudo que podia fazer era olhar o massacre que acontecia na minha frente junto de minhas amigas. Após alguns segundos se debatendo desesperadamente, um alto estalo ecoou pelo beco. O bandido não suportou: Seu pescoço foi despedaçado, e agora não passava de um corpo morto pendurado na mão direita de Ismael, que soltou seu corpo logo em seguida.

Ismael POV

Recobrei a consciência, e a primeira coisa que vi na minha frente era minha mão segurando pelo pescoço um corpo sem vida. Eu o soltei e olhei para minhas mãos assim que o corpo caiu no chão. Elas estavam completamente ensanguentadas. Olhei a minha volta e vi outros corpos.

“O que? O que tá acontecendo? Não... eu não fiz o que eu to pensando...”

Olhei para Vivian, Gabrielle e Ana. Ignorei o fato de que seus corpos estavam reluzentes com algo, e prestei mais atenção a sua expressão de terror. Achei que minha ira me faria mais forte no momento certo, e o fez, mas ao ponto de que eu me tornaria um monstro. Eu havia cometido um pecado terrível, e parecia que a culpa e a tristeza engoliriam minha alma. Não sabia como iria lhe dar com aquilo, pois seriam tantos os problemas que resultariam de minhas ações que não sabia por onde começar a pensar. Andei em direção as garotas, mas elas se arrastaram para longe de mim, então parei de andar e olhei novamente para minhas mãos.

Ismael: Não, não era pra ser assim. Eu não queria fazer isso! Eu só queria proteger!!

Esbravejei aos céus. Pude ver as nuvens se moverem violentamente acima de nós, e um enorme clarão seguido de uma onda de choque me lançou de volta para o beco, me fazendo bater a cabeça no chão. Meu corpo parecia ter sido eletrocutado e rapidamente perdi a consciência com um pensamento em mente: Eu havia me tornado um monstro.


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